quarta-feira, 22 de maio de 2013

O Artifício da Loucura

 

Ah! Abraça-me, mulher! Para ti vou começar a minha loucura atlântica! Para ti renuncio às algas e às metamorfoses. As crisálidas são uma outra posse da noite. Voaremos depois, abstractos, pelo casulo dentro. Voaremos depois pelos próprios fios e pelos átomos da própria seda. As sensações serão novo tecido em nova indústria. Seremos industriais, portanto. Seremos tudo. Seremos noite e dia. Seremos.
 
Em tuas mãos escreverei muita coisa nova. Cidades erguerei e em seus muros botarei castelos e alcáçovas. E vinhas plantarei para ti. Sangue novo e ébrio será o nosso alimento.
 
Mas que crucificação esta que me tortura o sexo! Vinhas e figueiras. Judas Escariote. Folguedos da Primavera. Divertimentos ou crimes. Não. Só amor crescerá nessas colinas e em tuas mãos. Mas acredita nelas. São pequeninas, eu sei, mas tudo tem outra grandeza quando desprezamos o tamanho real das coisas, ou a sua deformação, e conquistamos aqueles outros valores sobre-reais que nos dizem tanta coisa de nossa infância. Ah! cidade amiga, dá-me essas mãos. Quero-as aqui, já! Prefiro este crime do que saber-te desprezar o mais rico alimento de nossa cabeça. Como queres outros olhos para as mãos se, assim tão verde, acreditas no desprezo dos outros?  Encosta   teu  desprezo  à  minha vontade  e tentaremos  uma  nova gramática. Mas não mistures, por favor, a semântica do nosso português com a de línguas estrangeiras. É belo estender a mão e saber que dimensão traduz, verdadeiramente, este gesto na nossa linguagem.
 
 
 
Quantos barcos nos dizem adeus, ou quantos soluços amarramos na própria garganta? Quantos braços voam até nós, ou quantas vontades sacrificamos num olhar? Por vezes tudo é simples e sentimos como que água fresca nos pulsos e banhamos o rosto nas mãos, nas nossas próprias mãos. As outras, aquelas que são ilusão do olhar, ou sortilégio da cabeça, guardamo-las para outras ocasiões, quando o desespero ou nos fere, ou joga connosco às escondidas. Nesse jogo fortuito vamos animando os barcos da nossa regata, ou ancorando-os na esperança, que também é água.  
 
Todos marítimos, somos piratas de um absurdo. As ondas vão e vêm como  os dias e as horas dos dias.
 
Tudo parece igual, demasiadamente igual, se a aventura não der às mãos uma outra realidade. Tudo o que se toca é, então, velame secreto num adeus aos objectos. Os mastros serão nossos dedos em êxito perpétuo. “Desferir” é a palavra de ordem a cada passo e junto de cada objecto-aventura.
 
Em nada poderemos apoiar os pés.  A aventura começa nesse exacto momento em que a voz se embarga e algo não consegue gritar dentro de nós. São os soluços amarrados à própria garganta. São milhares de barcos que partem à aventura dentro de nós. Tudo é, de repente, outra coisa e, ou se naufraga nas plagas longínquas de continentes ainda absurdos, ou começamos a sentir o vómito da posse, o êxito gritante da carne em espasmos. O remate da aventura será o refrescar do rosto na espuma da ressaca. Tudo é, então, violento, mesmo o prémio da aventura na realidade dos próprios gestos.
 
Assim temerosos, o que nos resta? Ou o barco a que nós diremos adeus, ou a travessia a vau de todo o oceano que anima as nossas vontades. A escolha é difícil. O perigo igual. O êxito comum.
 
Se não fosse todo este tempo com que envolvemos as mãos para, depois, as depositar no colo de nossa própria saudade, diria que perdemos, subitamente, a maior segurança de nós próprios.
 
 
 
Ah! Este súbito acordar pela manhã! E a noite quando entra pela garganta parece que, ela própria, produz outros ritmos de arte, ou lágrimas. Ah! Mas verdadeiramente é no longe, na distância que já não nos separa, no horizonte que não avistamos, que existe a delícia destas horas todas que parecem adormecer os membros e os olhos. Não é fartura. Não é enjoo. Não é sermos vítimas da paz ou da guerra que sempre alimentamos em nós. Nem tão pouco a concórdia se resolveu em nefasto juízo, ou se negociou como acção rendosa. Réditos são os prolongados silêncios do entardecer, quando os olhos gostariam de amar tudo para além do que não vêem, mas devoram com os segredos do pensamento e a guarda da imaginação.
 
Mas esta hora é outra e sinto-o neste arfar que não é respiração, mas loucura povoada de gestos nobres de quem vence. Vou, então, sabiamente, entrar em novo reino de vitória, em outra música, em abstracta orquestração destas horas que julgamos de tédio.
 
 
 
As mãos continuam a chamar pela manhã, aquelas acordadas manhãs de outrora. Os jardins ainda estão floridos e cada pétala, ou lágrima, é cuidado novo nesta horta que regamos de ânsias e de justificações. Vamos novamente acordar a loucura, ou o simples manejar daquelas sugestões que tantas vezes fizemos? Mas tem de ser um acordar secreto que nem os  olhos o vejam, nem a boca o sinta. A distância física, e só ela, aproxima as raízes, ou a febre, desta viagem em torno de nós.
 
Parece que, no fundo, nada consegue falar mais do que este silêncio de alma que só vê as palavras, ou receia pronunciá-las para além de cada gesto da mão que escreve. Também poderá existir um pensamento (outro pensamento) na ponta de cada dedo, como se a mão-toda fosse bem outra personalidade que pensa e executa a distância. Esta distância provoca-nos a memória de tudo e ri ou chora connosco, sempre como um novo alento para a habitação que nos vai envolvendo os passos. Os anos são janelas de um edifício único.  As cidades serão vidas sobrepostas, ou o fruto da intimidade de gerações.
 
A história faz-se de sangue e de cidades que se erguem ou se destroem. Portanto nem foi a segurança de nós próprios que perdemos subitamente. Estamos, apenas, a continuar a história da intimidade das nações!
 
 A tarde extingue-se no louvor do tempo que me atravessa e, pensando na noite, deixo a vista naufragar na janela do horizonte. Tomo em mim o barco de toda a pirataria e sulco as ânsias e as tristezas de meus dedos. Fico-me. Cravo em silêncio as unhas na carne das próprias mãos e grito. Grito todo, outra vez, por mim dentro e vejo e revejo a brusca exactidão do que quero e sou. Admiro, acima de tudo,  o que se passa em  mim e à minha volta. Então, perene, sou esperança nesta certeza de existir, nesta tarde de ser homem, nesta confiança de me afirmar.
 
Uns olhos, contudo, admiro neste requisito. Uma cidade construo neste dealbar de estação. Uma mulher adormece em meus braços nesta noite de esperança. Sou livre nos gestos e pago a infância e a tristeza da espera.
 
 
 
Não sei quem sou ou se sou uma invenção de mim. Caminho ou localizo-me sempre de encontro à noite e as pessoas atravessam-se-me nas mãos como se fossem estrelas. Mediana condição esta a de abrir as mãos na própria rua e não encontrar o justo princípio de mim!
 
 
 
É secreta a noite, como se a tarde não bastasse para desejos e silêncio. É no silêncio que nossas vozes se ufanam e todas as cores se transformam. A vitória, se pertence ao gesto, declina o passado e ultrapassa-nos. Por isso sinto as horas todas chamarem por mim, ou por uma oculta e sábia natureza a que parecemos pertencer.
 
Mas hoje entrego-me a este sabor das palavras que nada dizem de mim, como se fosse medo, ou procura apenas, o que me domina. Já me doem os olhos e o sono vem das próprias luzes, das silhuetas dos pinheiros, do comboio  que  atravessa  a  noite  e  parte  para  o  infinito de nós.  Por isso dizemos adeus às pessoas e às bagagens. E também porque nos entregamos a uma força diferente que é um arrastar de corpos pelo espaço da noite e da sala de aula. E é à partida que tudo nos dói. As unhas e os dedos.
 
Ah! Mas hoje já posso gritar:
 
                                                                   ESPERA-ME !
 
O grito ouve-se por mim dentro e volto a gritar. A noite e as horas batem no meu peito e ao longe a catedral ilumina-se como se fosse um castelo. Há névoa e som sobre a cidade e sinto-me partir como se os segredos da noite me empurrassem para a alegria do silêncio.
 
São nove da noite numa sala de aula onde há traços e palavras a riscarem o silêncio dos vidros embaciados. Haja paz em nossos gestos! Amanhã seremos livres. A liberdade, então, inicia-se na noite profunda, quando os traços,  ou  as  palavras, nos dizem inúmeras coisas de nossa infância. Esta liberdade é sempre uma mulher, ou nós mesmos efeminados no isolamento da dor e do sentir.
 
Que circunstância envolve, por isso, o olhar e o riso? Um beijo ou uma flor? Cada seio que apertamos na mão é sempre um mundo onde entramos pelo ritmo do medo, ou pelo desejo de não nos angustiarmos mais. E a chuva sabe tanto desta verdade! Propicia sempre o entardecer com alguém entre os braços, ou pássaros entre os dedos que fogem, fogem e correm atrás de tanta pétala, ou lágrima de nosso passado.
 
Mas a chuva, ai a chuva! E o frio? O frio é lume para o corpo que se aquece no desejo. O sexo encolhe-se com esta temperatura que vem de fora, como se as flores, ou os jardins todos, não tivessem que sofrer a invernia.
 
 
 
A calma e o bote atingem-me a garganta e afogo-me neste dia que se esgota no amor. Uma linha atravessa-se-me nos olhos. Não. Foi uma palavra de ordem: um navio apitou ao longe sobre os trilhos e os passageiros apeiam-se na estação. O chefe grita:
 
                                                                      LEIRIA-GARE !
 
Tudo volta ao princípio como se não houvesse ligação com a cidade. Então, ou se regressa ou se continua a pé. Ah! Mas quando aportam navios à minha cidade? Navios com crianças e laranjas queria eu aqui nesta noite e nesta sala de aula. Tudo como se a vida fosse um fruto ao sabor das ondas, ou do desejo.
 
Afogo-me ou nado contra o horizonte. Mas outra linha se levanta das carteiras e se atravessa nas janelas. É o horizonte da noite. Meço-o com uma régua e grito à turma:
 
                                                                        ARRUMAR !
 
Assim acabam os dias na arrumação das ideias e da memória dos factos. Pobres de nós que esgotamos tanta energia na inteligência das mãos que levamos à  boca,  desesperados  dos  dias  que  vão  acabando  sem a nossa presença. A morte, ao fim e ao cabo, é que nos irá definir. Quando não desejarmos mais nada. Uma pessoa que não deseja está definida, ou morta.
 
 
O! Inglória germinação! Tanta árvore a despontar e o Inverno a correr pelo  sumo  dos  frutos  que  hão-de  amadurecer.  Esta   sede,  ou  nocturna circunstância, é que fere o estômago e nos faz estender os braços para cada papel que cai no chão, como se a vida jamais pudesse existir sem aborrecimento, ou um não encontrar a forma perfeita para os gestos de dar e de receber.
 
 
 


Acaba a semana no exílio da carne. A quem louvar? Às árvores ou à água que nos alimenta e transforma a vigília em febre e leito? As estrelas são, por isso, o reflexo dos olhos e brilham, ou choram, como crianças nuas. É sempre a mesma coisa. Anos após estendo ainda os braços e caio sobre a minha própria fraqueza.
 
Adormeço e a semana extingue-se a meu lado.
 
Vou viajar em navios da noite. Com meninos e laranjas. Parto neste exacto momento em que o papel esgota a possibilidade de rectificar as palavras.
 
 
 
Augusto Mota, texto 13.10 e último de «O Artifício da Loucura», 1962 a 1964
 
 
- Discorrências sobre o nosso próprio limite.
 

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