Ah! Abraça-me, mulher! Para ti vou começar a minha loucura
atlântica! Para ti renuncio às algas e às metamorfoses. As crisálidas são uma
outra posse da noite. Voaremos depois, abstractos, pelo casulo dentro. Voaremos
depois pelos próprios fios e pelos átomos da própria seda. As sensações serão
novo tecido em nova indústria. Seremos industriais, portanto. Seremos tudo.
Seremos noite e dia. Seremos.
Em tuas mãos escreverei muita coisa nova. Cidades erguerei e em seus
muros botarei castelos e alcáçovas. E vinhas plantarei para ti. Sangue novo e
ébrio será o nosso alimento.
Mas que crucificação esta que me tortura o sexo! Vinhas e figueiras.
Judas Escariote. Folguedos da Primavera. Divertimentos ou crimes. Não. Só amor
crescerá nessas colinas e em tuas mãos. Mas acredita nelas. São pequeninas, eu
sei, mas tudo tem outra grandeza quando desprezamos o tamanho real das coisas,
ou a sua deformação, e conquistamos aqueles outros valores sobre-reais que nos
dizem tanta coisa de nossa infância. Ah! cidade amiga, dá-me essas mãos.
Quero-as aqui, já! Prefiro este crime do que saber-te desprezar o mais rico
alimento de nossa cabeça. Como queres outros olhos para as mãos se, assim tão verde, acreditas no desprezo
dos outros? Encosta teu desprezo à
minha vontade e tentaremos uma
nova gramática. Mas não mistures, por favor, a semântica do nosso português
com a de línguas estrangeiras. É belo estender a mão e saber que dimensão
traduz, verdadeiramente, este gesto na nossa linguagem.
Quantos barcos nos dizem adeus, ou quantos soluços amarramos na própria
garganta? Quantos braços voam até nós, ou quantas vontades sacrificamos num
olhar? Por vezes tudo é simples e sentimos como que água fresca nos pulsos e
banhamos o rosto nas mãos, nas nossas próprias mãos. As outras, aquelas que são
ilusão do olhar, ou sortilégio da cabeça, guardamo-las para outras ocasiões,
quando o desespero ou nos fere, ou joga connosco às escondidas. Nesse jogo
fortuito vamos animando os barcos da nossa regata, ou ancorando-os na
esperança, que também é água.
Todos marítimos, somos piratas de um absurdo. As ondas vão e vêm
como os dias e as horas dos dias.
Tudo parece igual, demasiadamente igual, se a aventura não der às mãos
uma outra realidade. Tudo o que se toca é, então, velame secreto num adeus aos
objectos. Os mastros serão nossos dedos em êxito perpétuo. “Desferir” é a
palavra de ordem a cada passo e junto de cada objecto-aventura.
Em nada poderemos apoiar os pés.
A aventura começa nesse exacto momento em que a voz se embarga e algo
não consegue gritar dentro de nós. São os soluços amarrados à própria garganta.
São milhares de barcos que partem à aventura dentro de nós. Tudo é, de repente,
outra coisa e, ou se naufraga nas plagas longínquas de continentes ainda
absurdos, ou começamos a sentir o vómito da posse, o êxito gritante da carne em
espasmos. O remate da aventura será o refrescar do rosto na espuma da ressaca.
Tudo é, então, violento, mesmo o prémio da aventura na realidade dos próprios
gestos.
Assim temerosos, o que nos resta? Ou o barco a que nós diremos adeus,
ou a travessia a vau de todo o oceano que anima as nossas vontades. A escolha é
difícil. O perigo igual. O êxito comum.
Se não fosse todo este tempo com que envolvemos as mãos para, depois,
as depositar no colo de nossa própria saudade, diria que perdemos, subitamente,
a maior segurança de nós próprios.
Ah! Este súbito acordar pela manhã! E a noite quando entra pela
garganta parece que, ela própria, produz outros ritmos de arte, ou lágrimas.
Ah! Mas verdadeiramente é no longe, na distância que já não nos separa, no
horizonte que não avistamos, que existe a delícia destas horas todas que
parecem adormecer os membros e os olhos. Não é fartura. Não é enjoo. Não é
sermos vítimas da paz ou da guerra que sempre alimentamos em nós. Nem tão pouco
a concórdia se resolveu em nefasto juízo, ou se negociou como acção rendosa.
Réditos são os prolongados silêncios do entardecer, quando os olhos gostariam
de amar tudo para além do que não vêem, mas devoram com os segredos do
pensamento e a guarda da imaginação.
Mas esta hora é outra e sinto-o neste arfar que não é respiração, mas
loucura povoada de gestos nobres de quem vence. Vou, então, sabiamente, entrar
em novo reino de vitória, em outra música, em abstracta orquestração destas
horas que julgamos de tédio.
As mãos continuam a chamar pela manhã, aquelas acordadas manhãs de
outrora. Os jardins ainda estão floridos e cada pétala, ou lágrima, é cuidado
novo nesta horta que regamos de ânsias e de justificações. Vamos novamente
acordar a loucura, ou o simples manejar daquelas sugestões que tantas vezes
fizemos? Mas tem de ser um acordar secreto que nem os olhos o vejam, nem a boca o sinta. A
distância física, e só ela, aproxima as raízes, ou a febre, desta viagem em
torno de nós.
Parece que, no fundo, nada consegue falar mais do que este silêncio de
alma que só vê as palavras, ou receia pronunciá-las para além de cada gesto da
mão que escreve. Também poderá existir um pensamento (outro pensamento) na ponta
de cada dedo, como se a mão-toda fosse bem outra personalidade que pensa e
executa a distância. Esta distância provoca-nos a memória de tudo e ri ou chora
connosco, sempre como um novo alento para a habitação que nos vai envolvendo os
passos. Os anos são janelas de um edifício único. As cidades serão vidas sobrepostas, ou o
fruto da intimidade de gerações.
A história faz-se de sangue e de cidades que se erguem ou se destroem.
Portanto nem foi a segurança de nós próprios que perdemos subitamente. Estamos,
apenas, a continuar a história da intimidade das nações!
A tarde extingue-se no louvor do
tempo que me atravessa e, pensando na noite, deixo a vista naufragar na janela
do horizonte. Tomo em mim o barco de toda a pirataria e sulco as ânsias e as
tristezas de meus dedos. Fico-me. Cravo em silêncio as unhas na carne das
próprias mãos e grito. Grito todo, outra vez, por mim dentro e vejo e revejo a
brusca exactidão do que quero e sou. Admiro, acima de tudo, o que se passa em mim e à minha volta. Então, perene, sou esperança nesta certeza de existir, nesta
tarde de ser homem, nesta confiança de me afirmar.
Uns olhos, contudo, admiro neste requisito. Uma cidade construo neste
dealbar de estação. Uma mulher adormece em meus braços nesta noite de esperança.
Sou livre nos gestos e pago a infância e a tristeza da espera.
Não sei quem sou ou se sou uma invenção de mim. Caminho ou localizo-me
sempre de encontro à noite e as pessoas atravessam-se-me nas mãos como se
fossem estrelas. Mediana condição esta a de abrir as mãos na própria rua e não
encontrar o justo princípio de mim!
É secreta a noite, como se a tarde não bastasse para desejos e
silêncio. É no silêncio que nossas vozes se ufanam e todas as cores se
transformam. A vitória, se pertence ao gesto, declina o passado e
ultrapassa-nos. Por isso sinto as horas todas chamarem por mim, ou por uma
oculta e sábia natureza a que parecemos pertencer.
Mas hoje entrego-me a este sabor das palavras que nada dizem de mim,
como se fosse medo, ou procura apenas, o que me domina. Já me doem os olhos e o
sono vem das próprias luzes, das silhuetas dos pinheiros, do comboio que
atravessa a noite
e parte para
o infinito de nós. Por isso dizemos adeus às pessoas e às bagagens. E também porque nos entregamos
a uma força diferente que é um arrastar de corpos pelo espaço da noite e da
sala de aula. E é à partida que tudo nos dói. As unhas e os dedos.
Ah! Mas hoje já posso gritar:
ESPERA-ME !
O grito ouve-se por mim dentro e volto a gritar. A noite e as horas
batem no meu peito e ao longe a catedral ilumina-se como se fosse um castelo.
Há névoa e som sobre a cidade e sinto-me partir como se os segredos da
noite me empurrassem para a alegria do silêncio.
São nove da noite numa sala de aula onde há traços e palavras a
riscarem o silêncio dos vidros embaciados. Haja paz em nossos gestos! Amanhã
seremos livres. A liberdade, então, inicia-se na noite profunda, quando os
traços, ou as
palavras, nos dizem inúmeras coisas de nossa infância. Esta liberdade é sempre uma mulher, ou nós mesmos efeminados no isolamento
da dor e do sentir.
Que circunstância envolve, por isso, o olhar e o riso? Um beijo ou uma
flor? Cada seio que apertamos na mão é sempre um mundo onde entramos pelo ritmo
do medo, ou pelo desejo de não nos angustiarmos mais. E a chuva sabe tanto
desta verdade! Propicia sempre o entardecer com alguém entre os braços, ou
pássaros entre os dedos que fogem, fogem e correm atrás de tanta pétala, ou
lágrima de nosso passado.
Mas a chuva, ai a chuva! E o frio? O frio é lume para o corpo que se
aquece no desejo. O sexo encolhe-se com esta temperatura que vem de fora, como
se as flores, ou os jardins todos, não tivessem que sofrer a invernia.
A calma e o bote atingem-me a garganta e afogo-me neste dia que se
esgota no amor. Uma linha atravessa-se-me nos olhos. Não. Foi uma palavra de
ordem: um navio apitou ao longe sobre os trilhos e os passageiros apeiam-se na
estação. O chefe grita:
LEIRIA-GARE !
Tudo volta ao princípio como se não houvesse ligação com a cidade.
Então, ou se regressa ou se continua a pé. Ah! Mas quando aportam navios à
minha cidade? Navios com crianças e laranjas queria eu aqui nesta noite e nesta sala de aula. Tudo como se a vida fosse um fruto ao sabor das
ondas, ou do desejo.
Afogo-me ou nado contra o horizonte. Mas outra linha se levanta das
carteiras e se atravessa nas janelas. É o horizonte da noite. Meço-o com uma
régua e grito à turma:
ARRUMAR !
Assim acabam os dias na arrumação das ideias e da memória dos factos.
Pobres de nós que esgotamos tanta energia na inteligência das mãos que levamos
à boca,
desesperados dos dias
que vão acabando
sem a nossa presença. A morte, ao fim e ao cabo, é que nos irá definir. Quando não
desejarmos mais nada. Uma pessoa que não deseja está definida, ou morta.
O! Inglória germinação! Tanta árvore a despontar e o Inverno a correr
pelo sumo dos
frutos que hão-de
amadurecer. Esta sede,
ou nocturna circunstância, é que fere o estômago e nos faz estender os braços para
cada papel que cai no chão, como se a vida jamais pudesse existir sem
aborrecimento, ou um não encontrar a forma perfeita para os gestos de dar e de
receber.
Acaba a semana no exílio da carne. A quem louvar? Às árvores ou à água
que nos alimenta e transforma a vigília em febre e leito? As estrelas são, por
isso, o reflexo dos olhos e brilham, ou choram, como crianças nuas. É sempre a
mesma coisa. Anos após estendo ainda os braços e caio sobre a minha própria
fraqueza.
Adormeço e a semana extingue-se a meu lado.
Vou viajar em navios da noite. Com meninos e laranjas. Parto neste
exacto momento em que o papel esgota a possibilidade de rectificar as palavras.
Augusto Mota, texto 13.10 e último de «O Artifício da Loucura», 1962 a 1964
- Discorrências sobre o nosso próprio limite.
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