Está muito sol, muito sol nesta manhã de verdura e crianças. E estou na
aula. Silêncio e trabalho. Janela aberta e prado ao longe, com vacas e rio. Às
vezes tudo parece natural. Talvez seja esta calma de um automóvel buzinando ao
longe e das casas sobre o horizonte que me satisfaça hoje, neste sol e neste
dia.
É Outono, sobretudo. A janela está aberta. A minha janela panorâmica
sobre tudo. Esta e a outra. As duas. Todas.
Ao longe, mais à esquerda, avista-se o pinhal e inicio em mim uma
digressão pelo mar. Começo aqui mesmo. Estradas e veredas de mim conduzem-me
todas ao mar. Regresso insatisfeito e volto aqui e à só-janela da aula.
Trancada com um búzio assegura-te entrada e saudação marítima. Vem, anda, e
corta o horizonte e arrasa as cidade da minha tristeza de ontem. Abraça-me aqui
mesmo e justifica o momento calmo de agora. Mas acho estranho este dia e a leve
calma de hoje. Foi, por certo, da viagem e da sesta de mãos dadas sobre a proa
do navio. Será que aportei a lugar seguro? Nem sei de mim! Nem sei das minhas
mãos! Molhadas ficaram com a violência das vagas e o esforço do suor. É certo que as beijaste
quando mais desanimaram. É certo que te ofereceste toda quando mais desanimei.
As mãos, essas (e por isso), as devolvo para ânimo e recompensa da luta. Bebe
nelas a água da tua sede.
Por humana simpatia ofereço sempre primeiro ao companheiro de viagem.
Depois bebo eu e recebo em mim a vida que ficou animada em minhas mãos. Sou
pouco higiénico, é certo, mas humano. A higiene é, em sua extrema partitura,
uma super-racionalização do humano. Desvirtua sentimentos e afasta-nos de nós.
É que nos lembra, por oposição extrema, uma degradação que o não é. Impõe-nos
vergonha de nós. Desvirtua-nos.
Regresso por desvirtuamento de higiene (mas mental) à janela de mim. A
outra deixa-me entrar risos que sobem do pátio. São meninas que tiveram algum
feriado. Sobe-me agora, também, a cor dos meus adolescentes guerreiros. É
verdade, hoje está um sol de guerra amorosa. Hoje podem libertar-se pombas e
oferecer-se flores. Só o vento que agita os cabelos naquela “Ala dos Namorados” não tem correspondência cá fora. Só, talvez,
nos gritos das crianças. Melhor, nos gritos surdos de tudo o que agora penso e
sou.
Podia, por exemplo, crucificar-me no sol e deixar-me desfalecer sem que
viesses com pombas e flores. Mas vem, traz flores nos cabelos e pombas nos
seios. Só em asas e pétalas sinto remissão para o dia de hoje.
Pombas, ou sangue, são uma e a mesma manifestação deste viajar. Os
olhos são tristeza, ou grito. As mãos um debruar de gestos sobre o infinito, ou
o círculo ingente de nós todos. Ah! mas a boca, essa, é negação, ou vitupério,
quando se ressente da manhã que as pombas saúdam. Por isso quero a liberdade e
o sangue que me percorre como a seiva nas flores. Por isso grito, grito sobre
os ombros fechados e quedo-me e amparo o meu próprio gesto. Sublime expiação a
de tal mecânica!
Hoje fico-me à beira da vida e quero-me sacerdote. O rio é o templo.
Quero só uma pomba em meu regaço! Hei-de
deixá-la dormir, ou gritar-lhe pelas mãos dentro, ou definir-me numa entrega
antecipada de gestos. O gesto, sabemo-lo, é a linguagem surda do inconsciente.
Linguagem de traição para uma sinceridade de intenções. Que há, portanto, a
esperar e a desesperar?
Augusto Mota, texto 13.7 de «O Artifício da Loucura», 1962 a 1964
- Discorrências sobre o nosso próprio limite.
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