Sabe-me bem pronunciar este chamamento de ti. Pena que o
suspiro que me invadiu agora não o possas sentir mais perto para meu inteiro
favor. Depois de tudo nem sei quem tem a culpa do vazio que nos separa. E acho
que é muito justo não o aceitarmos. Temos tão pouco tempo. Temos tanta coisa
para não dizer e escutar com o silêncio vertebrado dos olhos. E como te poderei
abraçar muito se estremeço neste silêncio que me interpõe a tua imagem a cada
pulsação?
Sou alheio de mim, ou outro-eu, neste querer que é sempre vontade para
desejo da minha ventura. Nem era precisamente isto que eu queria dizer, mas
precisamente isto. Sim, é esta terrível condição de querer o absoluto simples,
quando os dedos tocam só o relativo, que nos deixa ficar dominados por tudo o
que ainda nos diminui mais e faz de nós criaturas ímpares aos nossos
olhos-alheios.
O artista é, por dom sublime, mais fraco (em sua
fortaleza) do que o homem comum, pois soçobra por não realizar o seu absoluto
poético. E depois o mundo fecha-se-lhe todo, como à criança que não alcança a
laranja em cima da mesa. E a laranja é, ao fim e ao cabo, uma coisa tão banal!
Vende-se às dúzias no mercado. E porque não há-de ser justo não se vender
angústia no mercado?
E cansaço por
via da angústia. Para quê relativismos? Tudo se passa na cabeça. A cabeça, então, é que não devia
pensar certas coisas acerca da relatividade. Assim fica-se com a ideia de que
procuramos umas coisas por relatividade de outras. E é. A relatividade da minha
paz está em tuas mãos, ou cabeça. Está em ti toda que me pensas e me ajudas.
Mas vem logo o circunstanciar do nosso querer e desço em mim súbito, como que
precipitado em um abismo. Onde caio? Em teus braços, ou nas ruas de tua cidade.
E forçoso é que chore da queda e das dores da queda. Tu, mãe por meu querer,
oferece-me descanso em teu colo. Preciso de saber tantas coisas. Preciso de
saber tantos gestos, incipientes a princípio, mas cujo conteúdo adivinho útil
em minha gramática de paz.
Caio em ti por necessidade de abortar tudo o que em mim infecta o
nascimento mais verdadeiro. E sou exigente, por mim. Tenho a dor da experiência
a dar-me cabo dos movimentos mais subtis e a boca não se move no articular das
grandes palavras. Oh! maravilhosa natureza a nossa! Onde paramos neste
desabrochar de flores em tempo tão frio?
Este frio entrou-me pelas veias e estalou no fundo das pulsações. Agora
cavalga em mim como se impusesse ainda mais a necessidade de nos encontrarmos,
depois de tanto errar em angústia, ou veneno. A vida, afinal, é só esta que
levamos e o Inverno parece querer desperdiçar este tempo de juventude sem
termos as mãos dadas. Urge, portanto, que partamos já de nós até chocarmos na
corrida do encontro e ficarmos sem sentidos, pairando a meio do caminho, até
que o encontro real de nossas mãos desperte os olhos para o que inunda as
nossas faces de ternura, ou amor. Amar é tudo isto, sobretudo este correr pelo
ar e pelo mar em busca de outras sensações, este partir dos olhos ou da boca
para a lavra do infinito. Às vezes fico-me pequeno no meio deste torvelinho que
vejo mesmo com estes meus olhos.
Mas já seria grandioso se, como Jeová, olhasse o abismo, estendesse o
braço, te agarrasse pelos cabelos e puxasse bem para junto de mim. Depois o
ritmar de nossos corpos me haveria de fazer descansar do enorme esforço de ser
deus. Ficaríamos lado a lado como dois condenados que o destino atira para a
prisão. Ai a nossa doce prisão de sermos livres!
Sou Jeová, agora. Tudo em mim sou eu. Tudo em mim chama por ti. E tu,
cidade, pairas no esforço da minha garganta como se fosse lá que eu quisesse
ter braços. Quando vou para gritar és tu que sais à frente de todas as
palavras. E não grito. O segredo é nosso. Tem que ser nosso. Sim, as portas têm
que estar abertas. E que os outros sofram na carne tudo o que nos arrastou pelo
rio de sangue que agora nos inunda os membros. Ai doce sangue este em que amar
e morrer parecem rimar. É que quando se ama justifica-se a própria morte.
Intensifica-se a dor no gesto da dádiva, ou na carícia do pedido.
Ainda estamos vivos? Ou será que nunca estivemos vivos? Não sei. Mas é
tudo tão estranho. E uma gare antes da chegada de um comboio (pelo menos quando
se separam as mãos) tem sempre um vento triste que ilumina as coisas de outra
maneira. Porquê? Estranho sentimento este que comunicamos às coisas! Estranhos
os teus olhos, ou as tuas ruas, que não me queriam olhar com medo da partida! E
eu onde parava? Afoguei-me demais naquilo que os meus olhos subitamente
descobriram. Que descobriram eles? Voltaram a descobrir que és minha irmã, ou
irmã de minha cidade-toda! Maravilhosa e
reduzida família a nossa que vive e morre numa chegada e numa partida!
Sim, estamos vivos. Mas o que custa é ter consciência da loucura e
saber dominar a loucura até ao limite do possível. Quando não é possível (às
vezes escapa-se-nos pelas mãos!) morre-se mesmo em glória. E tudo isto é
difícil e estranho, dando-nos uma sensação de infelicidade que receia, ou
despreza, outra dimensão do conceito de viagem.
Augusto Mota, texto 13.8 de «O Artifício da Loucura», 1962 a 1964
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