UMA FLORESTA DE APARÊNCIAS
Chove sobre o corpo da cidade emudecida e
as beiras a pingar no vidraço dos passeios são o único sinal de vida que chega
até nós. Foi-se a azáfama de outros tempos e, agora, apenas os cães de raça
nórdica, que jazem a nossos pés, transmitem vibrações carinhosas e aquecem o
ambiente com a sua máscara característica e o olhar azulado das grandes, frias
e brancas extensões boreais.
Esta chuva lava-nos por dentro. Ao mesmo
tempo enriquece o solo onde plantámos árvores-de-homenagem para crescerem e
recordarem os tempos dignos de uma memória viva, quando o machado azul do
lenhador não conseguia cortar a raiz ao pensamento. E é este pensamento que vem
de longe, agora reforçado pela memória das coisas ausentes, que sentimos viver
à flor da pele e nas ruas chuvosas do nosso silêncio. E é este silêncio que faz tremer as raízes e os ramos das
árvores por onde, todas as Primaveras, corre a seiva que alimenta os gomos de
onde surgirão os novos ramos, as novas flores e os novos frutos. Esta
celebração da natureza não é um rito tribal, antes a justa homenagem aos feitos
que devem povoar a história dos dias e das cidades que guardamos na memória.
E assim gravamos o passado nos troncos
firmes das árvores! Mas vai sendo cada vez difícil progredir nesta floresta de
aparências que não deixa ver a clareira onde desejaríamos acampar emoções e
sensações.
A chuva parou. As beiras já não pingam na
calçada. O que não gravámos na memória das árvores perdeu-se pelo meio das
recordações mais recentes e vive algures. Talvez no espaço. Por certo entre as
palavras que, a esmo, nos inundam a escrita e tingem de negro as mãos que as
atiram ao ar para caírem, de novo, no crivo da experiência, deixando que o
vento norte arraste, para longe da eira onde escrevemos, as impurezas de estilo
e de significado.
Depois de tantos dias de amanho da terra e
a plantar palavras, a regar palavras, a colher palavras, a joeirar palavras,
resta-nos, para consolo do corpo e do espírito, a adiafa das palavras.
Augusto Mota, texto 40 de «A Geografia do Prazer», 1999
- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória.
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