sexta-feira, 10 de maio de 2013

A Geografia do Prazer


UMA  FLORESTA  DE  APARÊNCIAS

Chove sobre o corpo da cidade emudecida e as beiras a pingar no vidraço dos passeios são o único sinal de vida que chega até nós. Foi-se a azáfama de outros tempos e, agora, apenas os cães de raça nórdica, que jazem a nossos pés, transmitem vibrações carinhosas e aquecem o ambiente com a sua máscara característica e o olhar azulado das grandes, frias e brancas extensões boreais.
 
Esta chuva lava-nos por dentro. Ao mesmo tempo enriquece o solo onde plantámos árvores-de-homenagem para crescerem e recordarem os tempos dignos de uma memória viva, quando o machado azul do lenhador não conseguia cortar a raiz ao pensamento. E é este pensamento que vem de longe, agora reforçado pela memória das coisas ausentes, que sentimos viver à flor da pele e nas ruas chuvosas do nosso silêncio. E é este silêncio    que faz tremer as raízes e os ramos das árvores por onde, todas as Primaveras, corre a seiva que alimenta os gomos de onde surgirão os novos ramos, as novas flores e os novos frutos. Esta celebração da natureza não é um rito tribal, antes a justa homenagem aos feitos que devem povoar a história dos dias e das cidades que guardamos  na memória.
 
E assim gravamos o passado nos troncos firmes das árvores! Mas vai sendo cada vez difícil progredir nesta floresta de aparências que não deixa ver a clareira onde desejaríamos acampar emoções e sensações.

A chuva parou. As beiras já não pingam na calçada. O que não gravámos na memória das árvores perdeu-se pelo meio das recordações mais recentes e vive algures. Talvez no espaço. Por certo entre as palavras que, a esmo, nos inundam a escrita e tingem de negro as mãos que as atiram ao ar para caírem, de novo, no crivo da experiência, deixando que o vento norte arraste, para longe da eira onde escrevemos, as impurezas de estilo e de significado.      
 
Depois de tantos dias de amanho da terra e a plantar palavras, a regar palavras, a colher palavras, a joeirar palavras, resta-nos, para consolo do corpo e do espírito, a adiafa das palavras. 
 
Augusto Mota, texto 40 de «A Geografia do Prazer», 1999
 
- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória.
 

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