CONCERTO FESTIVO
Anos fazem-se todos os dias que acordamos
dentro de uma paisagem de sonho, onde a mais irreal fantasia percorre connosco
os atalhos secretos que levam, por entre doces pomares, às fontes de um rio que
corre para o norte de todas as sensações. Os laranjais reflectem-se nas águas
vagarosas, acabadas de nascer por entre nogueiras e
fetos que escondem os muros de pedra solta. São
estas imagens carregadas de cor e sabor que dão vida à memória da vida e,
permanentemente, adiam a distância entre nós e aquele outro horizonte que
fechará o círculo do tempo à nossa volta.
Festejamos as datas com promessas e música
de Vivaldi. Estes sons de flauta de bisel, cordas e cravo são o contraponto
ideal ao silêncio dos sonhos e dos pomares que justificam o rio e a corrente.
As cores são mais apetecidas e os sabores mais apetecíveis. As águas parecem
acelerar o seu curso ao ritmo da partitura, como se o executante, o maestro e o
espectador fossem uma e a mesma pessoa. O concerto aproxima-se do fim e da
nossa tristeza. Lembramos os tempos em que ouvimos esta mesma melodia, em
viagem, a caminho do mar e do sol poente, enquanto recordávamos muitas coisas e
não dizíamos nada de nós. Nem sabíamos nada de nós. Ou sabíamos, sem saber que
sabíamos. Ou sabíamos e não dizíamos. No entanto fomos a caminho do mar e
ouvimos mesmo as ondas a desfazerem-se na noite da praia, como se
quisessem prolongar a melodia que já nos
excitara a viagem e as recordações.
O sortilégio do mar, à noite, é o ser
capaz de prolongar as viagens que já fizemos e todas as que gostaríamos de
fazer a caminho de nós. As ondas, que só ouvíamos, excitavam à aventura e o
fresco da noite acentuava o cheiro da areia e do sal e fazia apetecer um
passeio à beira-mar, apanhando vieiras.
Vai longo o dia e temos de fazer o rio
regressar às fontes e ao seu curso calmo, entre pomares e laranjais. Repetimos
a melodia e despedimo-nos do sonho e da paisagem. Sequiosos de tanto vaguear,
por terra e por mar, bebemos água fresca da nascente e colhemos dos melhores
frutos para favorecer a viagem de volta à realidade dos dias e das noites.
Augusto Mota, texto 41 de «A Geografia do Prazer», 1999
- Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória.
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