Parece que hoje te desejo praia, hoje
nesta manhã enevoada e retirada ao meu horário habitual por imposição própria,
como se eu e a metereologia quisessemos coincidir na celebração do que foi
sagrado há oito dias. Dentro do vocabulário litúrgico talvez seja melhor
chamar-lhe requiem, um requiem de carne e estação, uma selvagem
atitude de compromisso necessário e lícito como a frieza da neblina que nos
acompanhou e fez, depois, derramar
orvalho sobre as margens e a vegetação da margens e as margens de nós
próprios.
Assim marginados em nós e pela circunstância ambiente,
especialmente o céu e a terra, atingimos um litoral distante, como náufragos à
deriva durante meses. Mas o nosso naufrágio era outro, talvez inverso. A
salvação parece volver-se em afogamento. O porto seguro é bem o centro de tudo,
de nós e do universo. Foi, sobretudo para o meu panteísmo feroz, o clímax das
atitudes ofertórias. Por isso te sagro na minha obscura religião. É com
lágrimas que o sinto e com grandeza de alma que o agradeço. Sabes, é como se
fosse um deus que, repentinamente, entrasse no redondel ao toque de uma marcha
tauromáquica e aclamado por milhares de aficionados. Seria o delírio perante a
besta ofensiva. Seria, antes de tudo, a apoteose do que é sagrado (porque justo e bom) e do que é feroz em sua grandeza animal (o que implica a própria definição de
tauromaquia).
Assim compreendida perante um deus
panteísta e animal esta missa saudosista
do sétimo dia, assim mesmo e apesar de todo o rito literário, continua a
atravessar-se neste santuário, como raio desferido por outro deus invejoso,
algo que me contraria e me faz volver sobre mim mesmo e reagir mal, como o
caracol que se espirala dentro da concha, quando, certamente como eu, prefere a
horizontalidade da acção, ou a verticalidade
de estado.
Contrariar é, por vezes, vencer. O
vencer é, por vezes, teimosia da parte do vencedor. Assim, vencer e vencedor
identificam-se numa mesma proposição que, se envolve acto e des-acto, é
sobretudo fraqueza e, talvez mais, desejo de aniquilação para mais vencer. Será
confuso tal raciocínio, mas, acima de tudo, quis dar-lhe aquele tom existencial
que agora me fecunda num desejo de me realizar.
Repetir todas as noites o gesto do
acordar será destruição. Isolarmo-nos em atitudes não pode substancialmente
nada. Assim o que propor? Fuga? Tomada de hábito? Reclusão? E quando os cavalos
relincham de encontro aos muros da cidade? Atacam simultâneos. Acobardam-se os
gestos. Prostituem-se ali mesmo na praça pública e, depois, aborrecem-se com
uma moral em decadência. Desencanto, sim, é a voz da cantora. Ponto final digo
eu, como falha em pauta de música. A vida, assim, perde a graça em melancolia,
como folhas mortas trazidas pelo vento leste.
“Ouves como é suave o mar? Ou será
Beethoven ajudando a união?” Agora o barquito rema contra o maestro e o
primeiro violino executa a batuta. Será o absurdo impondo um desejo atraiçoado,
ou um requinte de sábio saboreado depois da sobremesa?
(Algo escorre por mim acima e desfaz-se
em lágrimas para dentro).
Será que hoje me aproximei de um
vocativo? Ou tentei disfarçar um compromisso? Não. Chamar como todos fazem é
falta de entrega total. As palavras gastas de tantas afirmações metem nojo.
Prefiro inventar novos mitos e novas expressões de amor. Assim dominaremos o
original com um sabor de entrega não disfarçada. É que, neste caso, estamos a
abusar de uma criação para determinado fim que só nos pode trazer uma
satisfação muito especial, mesmo que nela vejamos a sublimação de um outro
desejo que se sente, mais do que se exprime. Assim rebolamo-nos nas palavras.
Assim adaptamos, sem compromisso, a exclamação ao tempo psicológico e ao tempo
físico. Será isto o denominador comum da entrega em palavras.
Tudo o que é natural é estranho, pois
acreditamos sempre mais no irreal
(quando ideal) do que no
real (quando nunca imaginado). Andamos,
deste modo, permanentemente presos numa luta de compromissos. Por isso imagino
primeiro o real, para viver depois o ideal. Isto é perigoso, mas bom e justo.
Assim me canso. Assim me arrasto. Assim não acredito que estejamos certos.
Mas o silêncio será vingança, ou espera?
Quando vingança, terá de ser vingança de nós. Quando espera terá de
ser a mesma e idêntica atitude de ansiedade de cada um de nós. Assim, e por
minha parte, desculpo um pouco a vertigem que se me atravessou nos olhos,
arrastando-te impessoal e deixando-me alheio de mim e de ti. Tenho vogado
inconsciente e ando a dormir a todo o momento, por necessidade da alma e
descanso do corpo.
De modo algum ainda regressei. Vivo
debaixo de pontes. Constantemente. No fim, mesmo no fim, vejo-me enclausurado
nesta cidade rodoviária como se a vida fosse um transbordo entre o não-ser e o
deixar de existir.
Augusto Mota, texto 13.3 de «O Artifício da Loucura», 1962 a 1964
- Discorrências sobre o nosso próprio limite.
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