quarta-feira, 15 de maio de 2013

O Artifício da Loucura



Parece que hoje te desejo praia, hoje nesta manhã enevoada e retirada ao meu horário habitual por imposição própria, como se eu e a metereologia quisessemos coincidir na celebração do que foi sagrado há oito dias. Dentro do vocabulário litúrgico talvez seja melhor chamar-lhe requiem, um requiem de carne e estação, uma selvagem atitude de compromisso necessário e lícito como a frieza da neblina que nos acompanhou e fez, depois, derramar  orvalho sobre as margens e a vegetação da margens e as margens de nós próprios.   
 
Assim marginados em nós e pela circunstância ambiente, especialmente o céu e a terra, atingimos um litoral distante, como náufragos à deriva durante meses. Mas o nosso naufrágio era outro, talvez inverso. A salvação parece volver-se em afogamento. O porto seguro é bem o centro de tudo, de nós e do universo. Foi, sobretudo para o meu panteísmo feroz, o clímax das atitudes ofertórias. Por isso te sagro na minha obscura religião. É com lágrimas que o sinto e com grandeza de alma que o agradeço. Sabes, é como se fosse um deus que, repentinamente, entrasse no redondel ao toque de uma marcha tauromáquica e aclamado por milhares de aficionados. Seria o delírio perante a besta ofensiva. Seria, antes de tudo, a apoteose do que é sagrado  (porque justo e bom)  e do que é feroz em sua grandeza animal  (o que implica a própria definição de tauromaquia).
 
Assim compreendida perante um deus panteísta e animal esta missa  saudosista do sétimo dia, assim mesmo e apesar de todo o rito literário, continua a atravessar-se neste santuário, como raio desferido por outro deus invejoso, algo que me contraria e me faz volver sobre mim mesmo e reagir mal, como o caracol que se espirala dentro da concha, quando, certamente como eu, prefere a horizontalidade da acção, ou a verticalidade    de estado.
 
 
 
 
Contrariar é, por vezes, vencer. O vencer é, por vezes, teimosia da parte do vencedor. Assim, vencer e vencedor identificam-se numa mesma proposição que, se envolve acto e des-acto, é sobretudo fraqueza e, talvez mais, desejo de aniquilação para mais vencer. Será confuso tal raciocínio, mas, acima de tudo, quis dar-lhe aquele tom existencial que agora me fecunda num desejo de me realizar.
 
Repetir todas as noites o gesto do acordar será destruição. Isolarmo-nos em atitudes não pode substancialmente nada. Assim o que propor? Fuga? Tomada de hábito? Reclusão? E quando os cavalos relincham de encontro aos muros da cidade? Atacam simultâneos. Acobardam-se os gestos. Prostituem-se ali mesmo na praça pública e, depois, aborrecem-se com uma moral em decadência. Desencanto, sim, é a voz da cantora. Ponto final digo eu, como falha em pauta de música. A vida, assim, perde a graça em melancolia, como folhas mortas trazidas pelo vento leste.
 
 
 
“Ouves como é suave o mar? Ou será Beethoven ajudando a união?” Agora o barquito rema contra o maestro e o primeiro violino executa a batuta. Será o absurdo impondo um desejo atraiçoado, ou um requinte de sábio saboreado depois da sobremesa?
 
               (Algo escorre por mim acima e desfaz-se em lágrimas para dentro).
 
 
 
Será que hoje me aproximei de um vocativo? Ou tentei disfarçar um compromisso? Não. Chamar como todos fazem é falta de entrega total. As palavras gastas de tantas afirmações metem nojo. Prefiro inventar novos mitos e novas expressões de amor. Assim dominaremos o original com um sabor de entrega não disfarçada. É que, neste caso, estamos a abusar de uma criação para determinado fim que só nos pode trazer uma satisfação muito especial, mesmo que nela vejamos a sublimação de um outro desejo que se sente, mais do que se exprime. Assim rebolamo-nos nas palavras. Assim adaptamos, sem compromisso, a exclamação ao tempo psicológico e ao tempo físico. Será isto o denominador comum da entrega em palavras.
 
 
Tudo o que é natural é estranho, pois acreditamos sempre mais no irreal  (quando ideal)  do que no real  (quando nunca imaginado). Andamos, deste modo, permanentemente presos numa luta de compromissos. Por isso imagino primeiro o real, para viver depois o ideal. Isto é perigoso, mas bom e justo. Assim me canso. Assim me arrasto. Assim não acredito que estejamos certos.
 
Mas o silêncio será vingança, ou espera? Quando vingança, terá de ser vingança de nós. Quando espera terá de ser a mesma e idêntica atitude de ansiedade de cada um de nós. Assim, e por minha parte, desculpo um pouco a vertigem que se me atravessou nos olhos, arrastando-te impessoal e deixando-me alheio de mim e de ti. Tenho vogado inconsciente e ando a dormir a todo o momento, por necessidade da alma e descanso do corpo.
 
De modo algum ainda regressei. Vivo debaixo de pontes. Constantemente. No fim, mesmo no fim, vejo-me enclausurado nesta cidade rodoviária como se a vida fosse um transbordo entre o não-ser e o deixar de existir.
 
 
Augusto Mota, texto 13.3 de «O Artifício da Loucura», 1962 a 1964
 
- Discorrências sobre o nosso próprio limite. 

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