quinta-feira, 2 de maio de 2013

A Geografia do Prazer

 
TEMPO  DE  LAVRAR

Junto às muralhas da cidade antiga acampámos as sensações que invadiram a noite de lua cheia. Como turistas avisados percorremos as ruas todas dos bairros periféricos e saudámos com gestos amigos a azáfama que agitava o mercado de levante. Em cada tenda saboreámos os doces regionais e provámos quase todas as iguarias da gastronomia local. Experimentámos roupa nova e divertimo-nos nas barracas de jogos inofensivos. Comprámos flores brancas para entrelaçar no vento frio que agitava os cabelos e gretava os lábios. Nos olhos cansados de tanto alvoroço guardámos as emoções que os dedos foram lavrando no campo enluarado, como se estivessem a bordar um precioso bragal.
 
Agora, sentados nas largas avenidas do centro da cidade, descansamos do tempo da lavra e aguardamos uma safra abundante a justificar o zelo que soubemos repartir pelo terreno arável da imaginação e pelo corpo aberto das sensações. A cidade, vista de dentro e de perto, parece aliviar-nos do esforço e dos anos que caminham sempre ao nosso lado. Por isso é bom olhar os olhos que sabem olhar e aquecer  as mãos nos gestos que sabem desculpar. 
 
A noite fria dilui-se no brilho dos olhos que reflectem a lua cheia e juntos atravessamos a barbacã a caminho da realidade.
 
   
Augusto Mota, texto 37 de «A Geografia do Prazer», 1999

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