Será que ainda caminhas pela areia de nossos passos, ou
reduzimos o tempo ao sabor da memória? Será que ainda caminho pele areia de
nossos passos, ou reduzimos o tempo ao sabor da memória? Ai esta imaginação que
se alimenta tanto do que perdem as mãos!
Tenho-me preocupado com a imagem de nós a caminho das dunas, nós
delicadamente amigos e um tanto diplomatas! Esta imagem impõe-me qualquer coisa
de estranho que ainda não desvendei. Reparaste que o longe que avistámos estava
já lá, mas o perto que íamos vivendo conquistava-se àquele imediato futuro cujo
sabor, ou posse, às vezes desperdiçamos? Portanto o futuro pode conquistar-se
com a vista, mas não se viver com as mãos.
O que fui, o que sou, o que serei a ti cabe em desgraça. Se é o coração
que beijas é, antes, a minha vida que sorves, como se novos processos da
medicina pudessem resolver-se num acto físico recíproco. Ah! Eterna esta carne
que nos cobre os ossos e nos transmite também as doenças! Ah! Diabo de vida
onde vivemos e morremos com a sensação de contínuo perdão! Mas perdão para
quê? Quero querer para
além de todas as forças e descobrir, descobrir porque se me abafa a cabeça em certos momentos e
me sinto assassino, ou desgraçado de sentimentos. Às vezes parece-me ultrapassar o cume lícito de minhas
vibrações e desfaleço tanto que me sinto como a criatura mais repudiada do
universo. Começo a sentir a pele inchar sobre o pulsar das ideias e as palavras
falam tanto para dentro, tanto para dentro, tão vertiginosamente para dentro
que não reajo ao menor (ou maior) estímulo. E isto tudo é por um sentimento de
amor. Por um grande sentimento de amor. Daqueles que nunca se encontram, mas
para onde se caminha.
Anda, vamos pela praia. As pegadas que ficam para trás são mesmo nossas.
Não iremos sós. Nossos passos justificam a companhia das mãos.
Assim sendo e quando algo desce sobre mim como maldição, ou santo
espírito do mal, recolho-me ao conselho de minha infância e arrasto anos a
desvendar o fruto do meu trabalho. Venho depois (venho sempre) mais justo e
bom. O sofrimento sempre me alimentou e justificou os olhos. Estes que vês são,
apenas, para solenes ocasiões. Escondo outros, para dentro, que ofereço e gasto
no fogo e voragem da minha luta. Ou, então, serão todos a mesma coisa (já nem
sei), purificados agora pela boca de teus desejos.
Agora como nunca o tempo parece ter parado. Que estupor de vertigem
esta a de viver antes do tempo! Ainda se tivesse forças para me entregar a
outros devaneios, o tempo seguiria o seu rumo normal. Mas não. Penso,
sobretudo, que ainda vamos ter tanto tempo entre as nossas vontades e o chegar
de um comboio. Ah! Mas então costumo deitar-me, também, na sensação do
imaginar-te e durmo por ela dentro, até ficar acordado para o calor que me sufoca,
para a cabeça que me pesa e para as pernas que acusam o tormento de viver de
cabeça para baixo. Ah! Quando? Como? Justiça? Olhos? Boca? Interrogações sem
nexo? Ou eu apenas desejoso de querer respostas de tua própria boca? Não sei,
francamente, se estes dias todos serão de calma ou de doença. De qualquer modo
terão de ser vingados. Nós o exigimos para nossa igualdade.
Deixa-me, ao menos, brincar nas ruas de tua cidade, já que nada me é
lícito neste frio que tenho. Nesta ausência de palavras que tenho e não queria.
Mas, agora, o querer já me exige outras grandes coisas para além das palavras e
do silêncio dos meus gestos desperdiçados. Então amar é ter consciência dos
gestos que se desperdiçam no silêncio, neste puro silêncio onde os olhos não se
reflectem, onde as mãos não se comparam, onde as bocas não murmuram sentimentos
para as horas. E tudo, tudo parece ir e vir de mim e para mim, sem qualquer
significado, sem outra responsabilidade que não seja a de querer ter
consciência desse todo (ou tudo) que me faz tremer e gritar e depois volver-me
sobre mim mesmo. Ah! Mas todas estas voltas serão um dia redimidas pelas mãos,
pelos olhos, pela boca, por tudo isto perpetuamente redimidas. Assim redenção e
amor igualam-se e purificam-se. Assim os gestos e as intenções desses gestos
serão nova expressão daquilo que não sabemos que somos.
A intenção e o ser ganham no futuro significados absolutos. Condicionar
o futuro será, outrossim, hipotecar a intenção. Será, até, limitar o que se
anseia com aquilo que se teme.
Augusto Mota, texto 13.9 de «O Artifício da Loucura», 1962 a 1964
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