O ARTIFÍCIO DA LOUCURA
Loucura, sábia loucura de sexo e mar esta que passou a
invadir-nos e que espalhamos por nós mesmos como se fora uma benção para o
corpo. É que assim obrigamo-nos só a acreditar naquilo que conseguimos dominar
e fazer e desejar. E então quando se tem uma mulher, nem que seja só pelas
mãos, ou pelos olhos, ou ainda no mais secreto do nosso centro, o infinito
estala-nos nas unhas como se fosse fogo
(ou artifício) a relaxar-nos os
nervos. Depois o receio passa a ter outra dimensão, já que o desejo se alimenta
da própria loucura. Esta, porém, nunca é um fim de libertação, mas um meio de
justificação, ou caminho paralelo para a purificação.
Tudo isto, tudo isto, contudo, deve saber a
estultícia, a outra maneira de disfarçar a solidão e o tempo que separa as mãos
que amam dos olhos que desejam. Este género de apetências acarreta sempre
outros factores que definem e condenam. Mas salvam, sobretudo. E é bom que
assim seja. A salvação quando está no desejo justo é uma via justa para as
pernas, ou para a imaginação que nunca se cansa de caminhar, de muito caminhar
pelas flores dentro, pelos prados fora, pela ausência de outro corpo, ou pela
presença de nosso próprio sexo.
Ai as mãos e os poetas! As flores
quando germinam já estão condenadas. Faz parte da apetência. É a salvação. É
outro ritmo para o sangue e para a carne. É um novo plano para a construção do
mundo, ou da cidade, ou da nossa célula familiar. A poesia é que, quase sempre, receia a
edificação das ruas, ou servir as montras de
nossos estabelecimentos corporais. Nessa altura já não se processa nada e
ingentes serão os braços perante tal recusa.
O que vale é disparar contra o
espaço todas as nossas virtualidades e agarrarmo-nos bem ao tempo, não das
recordações, mas ao tempo que iremos viver realmente. Arranjaremos, por certo,
calma para os olhos e calma para as mãos. A boca terá
outra tarefa. Ficar
calada, ou sorver
os nossos próprios olhos para
alimentar o futuro espaço na exiguidade das horas que vão sobrar. É que quando se alimentam tais
horizontes em nosso próprio peito sujeitamo-nos
à tortura das palavras. A desfilada é outra espécie de corrida para as
sensações e para os dedos:
Encostei-me a uma sensação e despenhei-me pelo abismo do meu sangue.
Ah! Como domino estas flores e estes
pulsos que ergo para ameaçar a derrocada! Grito! Grito por mim abaixo e
sinto nos pés a força deste caminhar. Vou para oriente. Aí repousa a memória
dos dias e revejo-me criança. Esta queda em minha infância parece insidiosa. É
justa, contudo. Sinto-lhe o valor e albergo nela todos os gestos que hoje me
amparam as sensações. Por isso este desfalecer encostado à memória me traz uma
satisfação de juventude e uma força de método.
O sangue agora é outro e a mulher que me atravessa a garganta
verticalizou-se apoiada ao mais belo de mim. Respiro com outra dificuldade
e tenho
que dizer às mãos
que a poesia já não é um grito de pássaro, ou um grito de flor. A poesia, agora, é tudo o que vibra entre
os meus dedos. As sinfonias passaram a ser outra coisa, mas a mesma coisa vista de outro modo. O maestro sou eu. Domino a orquestra com um
simples gesto, ou repudio a liberdade das escalas musicais.
Outra maneira de me encostar às sensações é este costume de domínio
para perceber o que tento criar. A criação parece ser, portanto, uma sensação
de domínio que nos é oferecida para nosso governo:
HÁ FOGO NA
CONSTRUÇÃO DO MEU ANIMAL !
Agora habita-me as pernas um horizonte estranho. Estou virado a norte e
a ocidente queda-se o mar e o céu. Os pinhais escoam-se até aos joelhos e não
me deixam andar. Os passos são outro sentimento para aquilo que empresto às
mãos. Estas, por força da noite, entregam-se a outro caminhar que não sabe o
que é distância, nem o que é cansaço. São vertigens isto que tenho! Vertigens
num mirante sobre a planície e a aula. Os alunos são camponeses e operários.
Moços de lavoura todos nós o somos. A algazarra e os bois é que nos dão uma
estabilidade de pessoas opulentas.
Sensações, sensações, sensações. Os óculos são um automóvel. Os olhos
um corredor e eu um quarto encerado. Os passos espelham-se no lustro como se
fora um palácio que me dessem para habitar. O mármore está nas veias. A
escadaria são as pulsações. Quando entro em mim parece que há trombetas para
saudar um visitante desconhecido. Régia corte esta! Alabardas sim, mas quero
outro ritmo em toda esta diplomacia.
Augusto Mota, texto 13.1 de «O Artifício da Loucura», 1962 a 1964
- Discorrências sobre o nosso próprio limite.
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