sábado, 11 de maio de 2013

O Artifício da Loucura


O  ARTIFÍCIO  DA  LOUCURA

Loucura, sábia loucura de sexo e mar esta que passou a invadir-nos e que espalhamos por nós mesmos como se fora uma benção para o corpo. É que assim obrigamo-nos só a acreditar naquilo que conseguimos dominar e fazer e desejar. E então quando se tem uma mulher, nem que seja só pelas mãos, ou pelos olhos, ou ainda no mais secreto do nosso centro, o infinito estala-nos nas unhas como se fosse fogo  (ou artifício)  a relaxar-nos os nervos. Depois o receio passa a ter outra dimensão, já que o desejo se alimenta da própria loucura. Esta, porém, nunca é um fim de libertação, mas um meio de justificação, ou caminho paralelo para a purificação.
 
Tudo isto, tudo isto, contudo, deve saber a estultícia, a outra maneira de disfarçar a solidão e o tempo que separa as mãos que amam dos olhos que desejam. Este género de apetências acarreta sempre outros factores que definem e condenam. Mas salvam, sobretudo. E é bom que assim seja. A salvação quando está no desejo justo é uma via justa para as pernas, ou para a imaginação que nunca se cansa de caminhar, de muito caminhar pelas flores dentro, pelos prados fora, pela ausência de outro corpo, ou pela presença de nosso próprio sexo.
 
Ai as mãos e os poetas! As flores quando germinam já estão condenadas. Faz parte da apetência. É a salvação. É outro ritmo para o sangue e para a carne. É um novo plano para a construção do mundo, ou da cidade, ou da nossa célula familiar.  A poesia é que, quase sempre, receia a edificação das ruas, ou servir as montras de nossos estabelecimentos corporais. Nessa altura já não se processa nada e ingentes serão os braços perante tal recusa.
 
O que vale é disparar contra o espaço todas as nossas virtualidades e agarrarmo-nos bem ao tempo, não das recordações, mas ao tempo que iremos viver realmente. Arranjaremos, por certo, calma para os olhos e calma para as mãos. A boca  terá  outra  tarefa.  Ficar  calada,  ou  sorver  os  nossos  próprios olhos  para  alimentar o futuro espaço na exiguidade das horas que vão sobrar. É que quando se alimentam tais horizontes em nosso próprio peito sujeitamo-nos  à tortura das palavras. A desfilada é outra espécie de corrida para as sensações e para os dedos:
 
Encostei-me a uma sensação e despenhei-me pelo abismo do meu sangue. Ah! Como domino estas flores e estes  pulsos que ergo para ameaçar a derrocada! Grito! Grito por mim abaixo e sinto nos pés a força deste caminhar. Vou para oriente. Aí repousa a memória dos dias e revejo-me criança. Esta queda em minha infância parece insidiosa. É justa, contudo. Sinto-lhe o valor e albergo nela todos os gestos que hoje me amparam as sensações. Por isso este desfalecer encostado à memória me traz uma satisfação de juventude e uma força de método.
 
O sangue agora é outro e a mulher que me atravessa a garganta verticalizou-se apoiada ao mais belo de mim. Respiro com outra dificuldade e  tenho  que dizer  às  mãos  que a  poesia  já não é um grito de pássaro, ou um grito de flor. A poesia, agora, é tudo o que vibra entre os meus dedos. As sinfonias passaram a ser outra coisa, mas a mesma coisa vista de outro modo. O maestro sou eu. Domino a orquestra com um simples gesto, ou repudio a liberdade das escalas musicais.
 
Outra maneira de me encostar às sensações é este costume de domínio para perceber o que tento criar. A criação parece ser, portanto, uma sensação de domínio que nos é oferecida para nosso governo:
            
                        FOGO  NA    CONSTRUÇÃO   DO   MEU  ANIMAL !
 
Agora habita-me as pernas um horizonte estranho. Estou virado a norte e a ocidente queda-se o mar e o céu. Os pinhais escoam-se até aos joelhos e não me deixam andar. Os passos são outro sentimento para aquilo que empresto às mãos. Estas, por força da noite, entregam-se a outro caminhar que não sabe o que é distância, nem o que é cansaço. São vertigens isto que tenho! Vertigens num mirante sobre a planície e a aula. Os alunos são camponeses e operários. Moços de lavoura todos nós o somos. A algazarra e os bois é que nos dão uma estabilidade de pessoas opulentas.
 
Sensações, sensações, sensações. Os óculos são um automóvel. Os olhos um corredor e eu um quarto encerado. Os passos espelham-se no lustro como se fora um palácio que me dessem para habitar. O mármore está nas veias. A escadaria são as pulsações. Quando entro em mim parece que há trombetas para saudar um visitante desconhecido. Régia corte esta! Alabardas sim, mas quero outro ritmo em toda esta diplomacia.
 
Augusto Mota, texto 13.1 de «O Artifício da Loucura», 1962 a 1964
 
- Discorrências sobre o nosso próprio limite. 
     

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