domingo, 3 de março de 2013

A Geografia do Prazer


A    ARTICULAÇÃO  DOS  DIAS

 As gaivotas e Bach ajudam a esta harmonia com o mar, onde o coração e a boca, a acção e a vida são um coral da Cantata nº. 147. Assim a ardente memória do sol em meu peito queima e transporta os reflexos da natureza bem para dentro de mim. Com um entardecer destes a melodia espraia-se entre os escolhos que agora se avistam na baixa-mar, como se quisessem ilustrar, de seguida, um adágio executado por um oboé e por um violino.

A ondulação forte que as mãos sentiram no início deste concerto arrasta-se, agora silenciosamente, pelo areal de nossos olhos, enquanto a névoa ao longe vai escondendo, envergonhada, toda esta harmoniosa sensação de estar vivo no coração e na boca e no agir e no viver. Por isso quando tudo se harmoniza em nosso pensar, as horas e os dias são uma doce recordação que gostaríamos de viver não só junto ao mar, mas também no mais alto do monte, para de lá avistar o cabo do mundo e todas as cidades que povoámos de ruas e de passos em volta dessas ruas.

Tanta memória das coisas faz girar a paisagem em torno de nós como se fôssemos o centro do universo. Tudo rodopia cada vez mais à nossa volta, até que, exaustos, acenamos ao tempo que já passou e despedimo-nos de nós e da harmonia que a natureza e o silêncio provocaram em nossos gestos.

Os gestos são sempre a ilustração do silêncio que as palavras não sabem articular. Que outra e nova medicina saberá curar este tempo de lazer e desejo?   
 
Augusto Mota, texto 16 de «A Geografia do Prazer», 1998  
 

1 comentário:

  1. Levam peso, estes textos. O peso que tornam insones noites que se queriam de repouso da alma. São a vivência dos tempos de hoje e hoje é o nosso futuro.

    ResponderEliminar