O MERCADO DE NOSSOS AFAZERES
Andamos permanentemente desacreditados. Todos! Somos
diplomatas desde o nascimento. Envergonhamo-nos uns dos outros. Invejamo-nos uns aos outros.
Se nos ajudamos é, até, para disfarçar a nossa própria fraqueza. Vivemos
dominados nem sei por quê. Agimos controlados pelas horas e apontamos os minutos
como moeda de troca muito corrente. O balanço geral do tempo é impotência.
A juventude, que é uma forma de utilidade e não uma
questão biológica, diz-nos, muitas vezes, que assim acontece. Somamos os anos e
temos pena de qualquer coisa que não fizemos. Sentimo-nos vítimas de um
enredamento da sociedade e da época e da nação. Isto pode ser uma desculpa, mas
nunca uma verdade.
A nação é um conjunto de trabalho. A época é definida pela utilidade desse
trabalho, utilidade que tem de ser só progresso. A sociedade, essa, não vitima
ninguém. É vítima da nossa desculpa.
Assim é fácil o logro. O que podemos é desanimar e
desconfiar da nossa verdadeira utilidade. Mas não é verdade que um simples
tronco pode salvar alguém de um naufrágio? Exigir um transatlântico ao nosso
lado é snobismo turístico. E vida é viagem. Viagem ao centro de nós. E a
purificação é derivada da participação, nunca da entrega-só. Participar na vida
dos outros é viajar no justo lugar a caminho do centro comum que é o trabalho.
O trabalho purifica. E o
amor também. Tudo o que nos faz participar, felizes, purifica. Por isso a
poesia purifica sempre o poeta. Pode não
agir assim para com
o leitor. Só quando se pressente identidade de vivências
se exalta a ligação. E toda a gente tem vivências. Do que viveu e do que não
viveu, mas desejou.
O desejo em poesia importa, aliás, sempre muito
mais. É incontido por natureza. Falha, porém, sempre que as mãos querem agir
muito directamente sobre a cabeça. Vem a tal gramática e a filologia e impõe-se
e interpõe-se, até, a história dos povos. As imagens desbragadas ficam-se a
ruminar outra vingança e podem mesmo dar assassínio.
A morte é, tantas vezes, falta de poesia! Quando
esta existe exalta-se, por suficiência, a distância que a carne impôs entre o
que vive e o que viveu. Não é certo que se exalta, ainda hoje, a morte dos
heróis e poetas com festejos e grinaldas? Nós é que erramos a educação de todos
os nossos sentimentos. Ficamo-nos quietos como as bestas que vêem os filhos
partir a caminho das feiras. Alimentamos de outra maneira o espaço religioso e
familiar e dizemos às crianças que a realidade nos é superior quando, afinal, o
que tocamos vive para nós a partir desse despreocupado gesto.
Os gestos permanecerão em toda a sua plenitude se os
quisermos memorizar. E é essa memória que faz heróis e poetas para os povos. E
essa mesma memória - memória satisfeita -
podia fazer, também, heróis para a família.
Um herói familiar será, portanto, todo o cidadão
justo e guerreiro de intenções. É simples e traz a todos contentamento social.
As grandes batalhas são estas, as do mercado de
nossas intenções.
Augusto Mota, texto 11 de «O Artifício da Loucura», 1962 a 1964
- Discorrências sobre o nosso próprio limite.
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