quarta-feira, 20 de março de 2013

O Arttifício da Loucura

 
O  MERCADO  DE  NOSSOS  AFAZERES
 
Andamos permanentemente desacreditados. Todos! Somos diplomatas desde o nascimento. Envergonhamo-nos uns dos outros. Invejamo-nos uns aos outros. Se nos ajudamos é, até, para disfarçar a nossa própria fraqueza. Vivemos dominados nem sei por quê. Agimos controlados pelas horas e apontamos os minutos como moeda de troca muito corrente. O balanço geral do tempo é impotência.
 
A juventude, que é uma forma de utilidade e não uma questão biológica, diz-nos, muitas vezes, que assim acontece. Somamos os anos e temos pena de qualquer coisa que não fizemos. Sentimo-nos vítimas de um enredamento da sociedade e da época e da nação. Isto pode ser uma desculpa, mas nunca uma verdade.
 
A nação é um conjunto de trabalho.  A época é definida pela utilidade desse trabalho, utilidade que tem de ser só progresso. A sociedade, essa, não vitima ninguém. É vítima da nossa desculpa.
  
 
Assim é fácil o logro. O que podemos é desanimar e desconfiar da nossa verdadeira utilidade. Mas não é verdade que um simples tronco pode salvar alguém de um naufrágio? Exigir um transatlântico ao nosso lado é snobismo turístico. E vida é viagem. Viagem ao centro de nós. E a purificação é derivada da participação, nunca da entrega-só. Participar na vida dos outros é viajar no justo lugar a caminho do centro comum que é o trabalho.
  
O trabalho purifica. E o amor também. Tudo o que nos faz participar, felizes, purifica. Por isso a poesia  purifica sempre o poeta. Pode não agir assim  para com o leitor. Só quando se pressente identidade de vivências se exalta a ligação. E toda a gente tem vivências. Do que viveu e do que não viveu, mas desejou.
 
O desejo em poesia importa, aliás, sempre muito mais. É incontido por natureza. Falha, porém, sempre que as mãos querem agir muito directamente sobre a cabeça. Vem a tal gramática e a filologia e impõe-se e interpõe-se, até, a história dos povos. As imagens desbragadas ficam-se a ruminar outra vingança e podem mesmo dar assassínio.
 
A morte é, tantas vezes, falta de poesia! Quando esta existe exalta-se, por suficiência, a distância que a carne impôs entre o que vive e o que viveu. Não é certo que se exalta, ainda hoje, a morte dos heróis e poetas com festejos e grinaldas? Nós é que erramos a educação de todos os nossos sentimentos. Ficamo-nos quietos como as bestas que vêem os filhos partir a caminho das feiras. Alimentamos de outra maneira o espaço religioso e familiar e dizemos às crianças que a realidade nos é superior quando, afinal, o que tocamos vive para nós a partir desse despreocupado gesto.
 
Os gestos permanecerão em toda a sua plenitude se os quisermos memorizar. E é essa memória que faz heróis e poetas para os povos. E essa mesma memória - memória satisfeita -  podia fazer, também, heróis para a família.
 
Um herói familiar será, portanto, todo o cidadão justo e guerreiro de intenções. É simples e traz a todos contentamento social.
 
As grandes batalhas são estas, as do mercado de nossas intenções. 
 
Augusto Mota, texto 11 de «O Artifício da Loucura», 1962 a 1964
 
- Discorrências sobre o nosso próprio limite.   

Sem comentários:

Enviar um comentário