domingo, 31 de março de 2013

A Geografia do Prazer

 
O   CONVÉS    DA  VIAGEM
 
Deitado sobre o convés dos livros olho o cavername da sala, agora transformada em navio, e zarpo em direcção ao território da espera. O oceano atormenta a saída da barra, enquanto disfarço a demora com sequências apetecidas e imaginadas:
                
                                          uma cidade repousa a meu lado e, juntos, vivemos e morremos num perpétuo vaguear pela nudez das sensações que descobrimos a cada momento.   face a face olhamos o espanto de nossos olhos, enquanto a mão do acaso alcança um sol-em-flor e lança sobre os nossos corpos o artifício do fogo que já queima as ruas que desejamos visitar.     nelas habitamos o prazer desta peregrinação.   não vogamos, afinal, no oceano.   preferimos a volúpia da ria espraiando-se pelo tempo passado a ver barcos altivos a sulcar a calma das suas águas e a sentir  o cheiro acre do moliço acabado de estender ao sol.
                 
                                        pousamos a cabeça nas horas solares, como que para sentir o pulsar do tempo e desenhamos na paisagem aquática o sonho de ontem: como um polvo agigantam-se os braços tentaculares de uma árvore de carne e seiva.   nos seios pendentes queremos olhos, enquanto do esbracejar dos ramos despontam rosas, relógios e o ritmo que alimenta a fantasia.    é uma árvore feminina esta a que propomos ao nosso encantamento e é através dela que esperamos lavrar a ria, o mar e os rios que se atravessam em nossos lábios e impedem a tranquilidade do corpo.    por isso sentimos a cabeça vazia e não somos capazes de nada.    intranquilos, então, nos olhamos e cansados ficamos da azáfama das horas e do jogo das palavras que se intrometem nas situações.
 
 
Solidários regressamos aos livros que atapetam o convés da viagem e transpomos o portaló a caminho da realidade dos dias que são o nada e o tudo de tão difícil existir. 
 
 
Augusto Mota, texto 21 de «A Geografia do Prazer», 1998      
 
 - Exaltação do corpo em viagem pelos continentes da memória.
                                                  

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