O CONVÉS DA VIAGEM
Deitado sobre o convés dos livros olho o
cavername da sala, agora transformada em navio, e zarpo em direcção ao
território da espera. O oceano atormenta a saída da barra, enquanto disfarço a
demora com sequências apetecidas e imaginadas:
uma cidade repousa a meu lado e, juntos, vivemos e morremos num
perpétuo vaguear pela nudez das sensações que descobrimos a cada momento. face a face olhamos o espanto de nossos
olhos, enquanto a mão do acaso alcança um sol-em-flor e lança sobre os nossos
corpos o artifício do fogo que já queima as ruas que desejamos visitar. nelas habitamos o prazer desta
peregrinação. não vogamos, afinal, no
oceano. preferimos a volúpia da ria
espraiando-se pelo tempo passado a ver barcos altivos a sulcar a calma das suas
águas e a sentir o cheiro acre do moliço
acabado de estender ao sol.
pousamos a cabeça nas horas solares, como que para sentir o pulsar do
tempo e desenhamos na paisagem aquática o sonho de ontem: como um polvo
agigantam-se os braços tentaculares de uma árvore de carne e seiva. nos seios pendentes queremos olhos, enquanto
do esbracejar dos ramos despontam rosas, relógios e o ritmo que alimenta a
fantasia. é uma árvore feminina esta a
que propomos ao nosso encantamento e é através dela que esperamos lavrar a ria,
o mar e os rios que se atravessam em nossos lábios e impedem a tranquilidade do
corpo. por isso sentimos a cabeça
vazia e não somos capazes de nada.
intranquilos, então, nos olhamos e cansados ficamos da azáfama das horas
e do jogo das palavras que se intrometem nas situações.
Solidários regressamos aos livros que
atapetam o convés da viagem e transpomos o portaló a caminho da realidade dos
dias que são o nada e o tudo de tão difícil existir.
Augusto Mota, texto 21 de «A Geografia do Prazer», 1998
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