quarta-feira, 6 de março de 2013

A Geografia do Prazer


O    POMAR    DAS    INTENÇÕES

 A febre que sinto não é só da cabeça. Também as mãos estão quentes e tudo parece estalar no lento caminhar pela memória da imaginação. Os sons estridentes da música afogam a saudade desejosa de tudo e, assim, fico a vaguear entre o sol e a penumbra de mim. Outra afirmação não é possível quando o calor vem de dentro, tolda os movimentos e alarga a distância que os sons percorrem pelos fios além. A articulação das palavras soa penosa e diferente é a mensagem que ouvimos desencantados e cada vez mais longe.
 
Esta febre deve vir do esforço e da luta que o sonho nos impõe. A paisagem desdobra-se à nossa volta e a vegetação fere as imagens com os seus espinhos ameaçadores e quase esvazia o sentido das coisas para lhes dar outro sentido. Velhas palavras vão arrastar novos significados como se tudo fosse, só agora, descoberto e saboreado. Este território das palavras parece falso quando com elas queremos assumir o domínio de nós por via de subtil dádiva de outrem.
 
Algures no descampado que a febre trouxe até mim vejo erguerem-se intenções como árvores em pomar carregado de frutos maduros e o apetite avassala as mãos para novas e delicadas colheitas. Mas quando os gestos já antecipavam o prazer e saudavam tão prometedora safra tudo se esvaiu entre os dedos e o sonho. Ficou o deserto amargo do nada e a memória do que a realidade nos vai permitindo.
 
É este vaguear entre os caminhos do sonho e a memória real das coisas saboreadas que ajuda a acalmar a febre dos dias que ainda vêm ao nosso encontro.
 
Augusto Mota, texto 18 de «A Geografia do Prazer», 1998

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