A LIBERDADE DA RAZÃO
Sempre que a dúvida procura sobrepor em nosso
espírito o desprezo pelos outros, será bom virar, ainda mais, os olhos para
dentro e mostrar a essoutros a alvura (ou pureza) de nossas intenções, de
nossos devaneios, de nossa utilidade integrada naquilo que nos obrigaram a ser
e fomos, naquilo que não nos deixam ser e queremos ser.
Sempre a vida é este caminhar entre hipóteses, como se não
fossem as árvores da borda da estrada que nos dessem a sombra, ou os frutos.
Que a hipótese seja, quando muito, um estímulo e não a génese da própria
dúvida. Uma e outra se se abraçam é para nosso conforto espiritual. A ambas
devemos o movimento das mãos. Mas a nenhuma só devemos entregar a herança dos
olhos. Estes querem sempre mais, muito mais do que aquilo que avistam em cada
rua e em cada segundo de nós. Os milímetros da carne que nos enforma são tão
necessários aos olhos que, sem horizontes e sexo, tudo ficará reduzido a uma
hipótese, a uma qualquer questão a exigir sábia resposta.
Esta exigência tem, assim, um valor específico em
nossa vida. Ela, por vezes, ultrapassa a própria carne e faz-nos chorar.
Teremos, então, o desequilíbrio entre uma força que age e uma força que não
age. Em sua substância serão idênticas. Diferenciam-se no agir, ou no não-agir.
Por outro lado chega a não agir a mais forte. Por isso mesmo, por ser a mais
forte. Nesta negação ao movimento radica a angústia a sua maior esperança – a
de deixar de ser propriamente angústia.
Os olhos participam bem neste jogo. São eles que ferem e
matam. A garganta, porém, é que absorve toda a força das pupilas e seca-se
nesse esforço. Então paramos em degradação. Então sentimos no sangue e na pele
a própria infâmia de existir. Passamos a desejar outra liberdade em outro
clima, sob outro céu que acaba por ser o mesmo daqui. O turismo é, pois, o grande culpado destes enganos psicológicos. Em nosso corpo, todavia, é que urge
criar um órgão de informação turística apropriado a todos os estados afectivos
que ainda não explorámos. Tudo, então, estaria sob outras ordens e a infância e
a adolescência não seriam jamais presentes de aniversário para nossa desgraça,
mas sim justificação aceitável para cada viagem, para cada minuto, para cada
milímetro de carne e de horizonte.
Ah! Estupor de vida e de corpo que arrasta connosco
as causas e as consequências! Algo deveria separar o que se ama do que se
despreza. Mas separação nítida. Ultrapassável, apenas, em caso de ocasional
exploração em profundidade. É que a horizontalidade é ainda o grande aroma das
sensações. Nela habitamos por imperativo estético, moral, religioso. Nela
alargamos a vista e a carne para fins mais sóbrios do que aqueles em que se
fica o equilíbrio vertical.
Enfim, é esse desejo de fuga e consequência que nos
afasta de nós nos minutos mais belos. Essa fuga uma vezes é música, outras
solidão. Quase sempre é beleza impraticável para lá do gesto de cada mão, ou do
sorriso de cada minuto. Este domínio do tempo por meio dos gestos corporais é
uma outra forma de sabedoria. É um desejar saber para mais querer. É aguentar
as consequências do impraticável, quando a hipótese e a dúvida não se
distanciam o suficiente para nos fazer amar outra liberdade. Liberdade e
vontade são domínios comuns para o mesmo corpo. O corpo, por vezes, é que se
aluga por baixo preço a um desejo-outro que não a liberdade.
Assim volvidos ao centro de nossa própria liberdade,
que mais exigir para tão urgente instância? Ah! A comida para a boca! O vinho e
o pão! Novas liberdades para a carne que, milímetro a milímetro, grita por
liberdade! Ah! O vinho, o vinho! E a carne. Sagração múltipla a do nosso sexo
que também vai, de repente, de um a outro canto de nós, sem que haja barreiras
no seu caminhar. Ele caminha no pão e no vinho como camponês em busca de lavradio
para a sua sementeira. Ele caminha na própria definição de liberdade e
extingue-se no prazer da vontade. É que acima de tudo temos a razão. E
desejamos a razão. A razão é, afinal, um ponto de partida para a solução do
nosso existir.
Assim, que maior desânimo a ultrapassar? Talvez a
razão diga mais do que um gesto da garganta que não chega a articular o nosso
próprio medo.
Augusto Mota, texto 10 de «O Artifício da Loucura», 1962 a 1964
- Discorrências sobre o nosso próprio limite.
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