O ÚLTIMO CÍRCULO
Há que ter a maravilhosa
certeza de que amanhã tudo vai estar certo. Urge fazer dos dias que avançam
para nós limites possíveis de nossas sensações todas. Há que poder enquadrar em
cada minuto essa certa certeza que hoje nos individualiza. Essa esperança tão
subtil no devir guiado por nossas mãos tem que ser o denominador comum de todas
as sensações de hoje. Senão tudo é falso, tudo nos vai saber a régia
ante-câmara para uma terrível pobreza. De espírito. Sim, porque é o espírito
que hoje nos alimenta e dá forças cada vez mais renovadas para a carne que, em
festim, temos de oferecer a alguém. Ou, então, será a morte.
Vive-se sempre para a carne por
sabor estético. Sempre. Hoje e cada vez mais. Esta deve ser a maior descoberta
do nosso tempo. Devemo-la à psicologia e aos poetas. Destes tiramos, por dom de
formação e sofrimento, aquela verve simbólica com que nos deixamos envolver e
que, mais ainda, nos dá aquele gozo (quase subalimentação) cujo gesto deixamos morrer em nossas
entranhas por egoísmo lúcido, que outros teimam em disfarçar de educação. Esta
jamais pode ser confundida com disfarce. Será sempre e sempre consciência
lúcida em actos e palavras. Será, cada vez mais, exegese de espírito e de
matéria. Impõe-se (e só) por uma consciência universal de tudo o que define o
homem e o integra na vida, essa vida total que hoje o progresso exige sábia,
humilde e consciente. Para tanto, a psicologia
(e a poesia) impõe-nos o espírito
como consciência primeira de vida.
Há que ir bem fundo em nosso eu de hoje e quase morrer no esforço da
travessia de nosso mar subterrâneo.
Sejamos individualistas nessa perigosa viagem. Se voltarmos à superfície será
com a cabeça coberta de limos e alegres com o prazer da vitória. Haverá, então,
a certeza de que trouxemos connosco toda a vida escura de outrora, todo esse arrastar
de algas que nos retraía os passos e nos fazia prisioneiros em nossa própria
habitação.
Feliz viagem esta a dos poetas
e da psicologia. Felizes os que se dão todos depois deste cansaço obscuro.
Tem sempre que ser assim. Este
egoísmo que inunda as vísceras é antes amor ao próximo e nunca a nós mesmos.
Depois a entrega é sempre mais total e nem se confunde com propaganda altruísta
e só-palavras. É adesão total, por carne e mãos, à alma dos outros, àquela
secreta existência alheia que, ávida de calor e gestos, quase sentimos arranhar
nossos olhos e nossos pés. Por isso se torna difícil o caminhar. Os pés sangram, doridos, e os
olhos recusam-se a olhar, por quererem ver mais.
Tudo é assim tão estranho, mas
tão verdade. Tudo é assim tão exigente, mas tão belo. Tudo está, então, certo,
por nada estar certo. É, porém, nesta antinomia de palavras (nunca na oposição total do drama) que tem de radicar o vigor da nossa fé. É aí
que a psicologia e os poetas buscam a definição da vida. O resto perde-se
em palavras que nunca encontrarão eco
para lá do ruído das fábricas, ou dos números que invadem cada vez mais as
escrivaninhas dos bancos e das companhias de seguros. Estranha esta metafísica
dos números por virtude da poesia. Entanto sejamos impenitentes no julgar da
máquina que nos envolve. Há sempre que deitar um braço de
fora e gritar por entre as engrenagens que nos torturam a carne e a alma. Sábio
indício de que progredimos em nosso trajecto. Urge mesmo um movimento de
rotação em torno do nosso próprio eixo, enquanto gravitamos, de pés e mãos, na
sistemática desagregação que a máquina nos impõe. Essa imposição é vital. Mas
que o rodar sobre nós próprios nos dê a meticulosa certeza de que esse facto,
em si causa e consequência, é, sobre todas as coisas, utilidade para nós
revertida utilidade para os outros.
Então existir é cumprir uma
existência de sangue no lugar justo. É saber florir as unhas no esforço da carne.
É, depois, entregar as rosas de nossa fecundação à órbita onde gravitamos por
direito e por utilidade. É assim que a psicologia nos diz que todas as rosas
são vermelhas do esforço do nosso sangue. É assim que os poetas nos confirmam
que as rosas são vermelhas do esforço do nosso sangue. Nesta identidade de
rotação e translação descobrimos o círculo de nossa existência. Por isso
sentimos que tudo nos pertence. Mas de tudo há que ter a poética consciência do
que é orgulho e do que é responsabilidade. É que não pode existir orgulho na
entrega. Ela tem de se justificar pela razão da própria vida e de tudo.
A responsabilidade é que é
fruto da razão que se quer forte para dar mais vida às próprias sensações. Esse
será o gozo total, o último círculo, o nosso limite, a consciência grandiosa de
que o nada e o tudo se identificam com o verbo da existência.
Só assim teremos a maravilhosa
certeza de que amanhã tudo vai estar certo.
Augusto Mota, texto 12 de «O Artifício da Loucura», 1962 a 1964
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Discorrências sobre o nosso próprio limite.
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