DELIMITAÇÃO POSSÍVEL DE UMA INTIMIDADE
Afinal intimidade acaba por ser mais uma traição à
amizade do que uma tradução de determinada atitude de entendimento, que se deve prolongar para
além de todos os limites possíveis (mas
sempre convenientes), nas relações
plurais que o nosso eu desenvolve
dentro de uma sociedade que o destrói gradualmente, à medida que se vai
revelando ao sujeito.
Parece, pois, fatal esta contingência de submissão a
pessoas e a coisas. Mesmo estas, as coisas, na sua intimidade nos poderão
trair. A sua existência como continente emocional possível conduz-nos,
imediatamente, a pessoas e a actos. Por isso nos costumamos afeiçoar tanto aos
objectos. Humanizamo-los, até, com um simples olhar. Depois, difícil será
quebrar o encanto. E então este age logo em condições menos propícias! Vem
mesmo (quase sempre) agarrado à recordação da traição e à traição
das pessoas e às pessoas e ainda à intimidade das pessoas, até fechar o círculo
de humanização (ou antes, descoisificação), na perene lembrança de nós próprios
enquanto seres pensantes.
Assim volvidos que somos a nós mesmos, havemos por
bem delimitar a fronteira máxima
da amizade, definindo-a
não por linhas
imaginárias, mas antes
por acções-princípio que são ainda o grande arauto dos
postulados individuais, o aviso gradualmente avolumado do que se quer e do que
se permite.
Querer e permitir diferenciam-se pela origem e natureza da acção. O primeiro
é o desdobrar de uma vontade-princípio. Exige, para a sua validação, um acto
subsequente que a execute. Permitir fica-se por uma aceitação sem compromisso
com qualquer acção posterior, pois esta pertence a um querer alheio. Apenas se
submete a uma valoração instintiva por parte do eu a quem se pede a concessão.
Saber distinguir a gama de concessões a fazer por
aqueles que queremos íntimos é, talvez, a grande dificuldade da amizade que não
se fica pela palavra.
Saber pensar nos outros, e com
eles, antes de pensarmos em nós, e por eles, nisso reside o segredo de toda
amizade que poderá anunciar a tal intimidade que nunca compromete valores e
posições individuais.
- Discorrências sobre o nosso próprio limite.
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