terça-feira, 12 de março de 2013

O Artifício da Loucura


DELIMITAÇÃO  POSSÍVEL  DE  UMA  INTIMIDADE

Afinal intimidade acaba por ser mais uma traição à amizade do que uma tradução de determinada atitude de entendimento, que se deve prolongar para além de todos os limites possíveis  (mas sempre convenientes),  nas relações plurais que o nosso eu desenvolve dentro de uma sociedade que o destrói gradualmente, à medida que se vai revelando ao sujeito.

Parece, pois, fatal esta contingência de submissão a pessoas e a coisas. Mesmo estas, as coisas, na sua intimidade nos poderão trair. A sua existência como continente emocional possível conduz-nos, imediatamente, a pessoas e a actos. Por isso nos costumamos afeiçoar tanto aos objectos. Humanizamo-los, até, com um simples olhar. Depois, difícil será quebrar o encanto. E então este age logo em condições menos propícias! Vem mesmo  (quase sempre)  agarrado à recordação da traição e à traição das pessoas e às pessoas e ainda à intimidade das pessoas, até fechar o círculo de humanização (ou antes, descoisificação), na perene lembrança de nós próprios enquanto seres pensantes.

Assim volvidos que somos a nós mesmos, havemos por bem delimitar a fronteira máxima   da  amizade,  definindo-a  não  por  linhas  imaginárias,   mas  antes  por acções-princípio que são ainda o grande arauto dos postulados individuais, o aviso gradualmente avolumado do que se quer e do que se permite.

Querer e permitir diferenciam-se pela origem e natureza da acção. O primeiro é o desdobrar de uma vontade-princípio. Exige, para a sua validação, um acto subsequente que a execute. Permitir fica-se por uma aceitação sem compromisso com qualquer acção posterior, pois esta pertence a um querer alheio. Apenas se submete a uma valoração instintiva por parte do eu a quem se pede a concessão.

Saber distinguir a gama de concessões a fazer por aqueles que queremos íntimos é, talvez, a grande dificuldade da amizade que não se fica pela palavra.

Saber pensar nos outros, e com eles, antes de pensarmos em nós, e por eles, nisso reside o segredo de toda amizade que poderá anunciar a tal intimidade que nunca compromete valores e posições individuais.
 
    Augusto Mota, texto 6 de «O Artifício da Loucura», 1962 a 1964


- Discorrências sobre o nosso próprio limite.

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