terça-feira, 12 de março de 2013

O Artifício da Loucura


DA  CRIAÇÃO  COMO  ADVERTÊNCIA
 
Em qualquer atitude de criação há sempre algo que fica destruído. É, porém, na consciência dessa destruição que reside um prazer novo, um imaginar de reacções que, por vezes, não se concretizam, uma satisfação de criança má cujo primeiro e grande interesse é destruir por destruir.
 
Mas se a maldade é, quando muito, um prazer subvertido para os outros, temos, ao menos, que contemporizar com o prazer só, nunca com as consequências desse prazer. Essas são, por vezes, demasiado irremediáveis para as tolerarmos um minuto que seja. Assim urge que a satisfação subvertida não ultrapasse a barreira da imaginação criadora, ou antes, destruidora, já que todo e qualquer acto de criação implica sempre outro que se lhe opõe e o antecede no tempo – a destruição. A destruição é, portanto, em sua origem e considerada moralmente admissível, um primeiro passo para a criação.        
 
Outrossim urge que saibamos medir todas as consequências de nossos actos e deles usufruamos aquele estado de satisfação  plena que nos identifica com a destruição e a criação.  Ambas terão de ser demasiado conscientes e integradas num plano de vida socialmente proveitoso.
 
 
Destruir, negar, recusar por simples e sádico prazer é posição demasiado cómoda para nela divisarmos uma ponta de verdade. Esta nunca se confude com atitudes e gestos teatrais. Nem ainda com a intoxicável sabedoria dos deuses que tudo desprezam. O seu culto, porém, nem a hoje subsiste. Assim estaremos mais descansados quanto a amanhã.
 
Sempre amanhã foi uma palavra adiada para tudo o que desejamos hoje. Melhor seria que o abuso desse desejo não disfarçasse o vocábulo num futuro remoto, para lhe saborearmos já a advertência.
 
Augusto Mota, texto 7 de «O Artifício da Loucura», 1962 a 1964
 
- Discorrências sobre o nosso próprio limite.

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